sábado, 27 de março de 2010

Josef não nasceu como as outras crianças. Ele não chorou ao sair das entranhas da sua mãe, nem chorou depois, e raramente chorava quando sentia fome ou frio ou medo.
Não cresceu como as outras crianças do seu bairro: raramente participava das brincadeiras próprias da infância, assim como não participou das "brincadeiras" da adolescência.
Com 12 anos tomou sua primeira grande decisão: deixou de lado suas raras companhias-com a excessão de uma- e comprou um livro do Nietzsche e esforçou-se por anos a entender algumas poucas ideias, e por fim, o livro em si. Naquele mesmo ano escreveu em seu diário- sua única companhia- a seguinte frase que ele ouvira de algum outro grande escritor: "Fiquei tão só, aos poucos. Fui afastando essas gentes assim menores, e não ficaram muitas outras"
Antes de sair da escola já tinha decidido que não ficaria mais em sua cidade. Ela foi sempre o alvo de suas inquietações e revoltas. Achava-a antiquada, retrógrada, não possuia teatro, nem cinema, nem música de qualidade e seu único refúgio era uma pequena biblioteca cujos livros ele já os tinha lido todos.
Um dia, foi-se embora.
Alugou um pequeno quarto de pensão e começou a trabalhar como auxiliar de escritório. Na primeira semana foi a uma ópera, dois museus e comprou livros usados, que para ele foi o ápice daqueles tempos. Fez alguns amigos.
Ingressou na faculdade meses depois, não sabia se fazia Filosofia ou Direito, acabou escolhendo Direito porque tinha mais pretígio social.
Arranjou uma namorada, Lucy. Não se apaixonara de primeiro momento, e também não se apaixonara de segundo, mas era necessário ter uma namorada porque seus pais estavam já desconfiados de sua sexualidade.
Em pouco tempo passou a achar os museus daquela cidade chatos, os teatros medíocres e os cinemas demasiadamente caros, além de que o trânsito era infernal e não se ouvia o barulho de pássaros. Resolveu que precisava morar numa cidade com praia.
Levou seus poucos pertences e Lucy, e alugou em pequeno apartamento. Sua primeira atitude foi comprar um bonsai e adotar uma cachorra. Conseguiu um emprego em um escritório de advocacia, e passeava frequentemente com Lucy, grávida, e sua cachorra, grávida.
Quando sua primeira filha nasceu ele não chorou. Nem quando a viu sair das entranhas de sua esposa, nem depois quando ela se formou no jardim de infância.
Decidiu que não deveriam mais morar na praia. Era demasiadamente úmido, a casa estava sempre cheia de areia e no período do verão era tão insuportável o barulhos dos carros e das gentes que ele não podia ler seus livros.
Mudou-se para uma cidadezinha vizinha daquela que nascera, tão menor quanto, e com ele viajaram todas as mesmas inquietações de outrora. Sabia que não suportaria morar lá por muito tempo. Ainda não tinha teatro, nem cinema, nem música de qualidade e era sempre muito parado, muito monótono e demasiadamente agrária, além de ser muito distante da capital e do litoral.
Estabeleceu-se nessa pequena cidade até os 15 anos de sua única filha, que ele nunca abraçou.
Depois, juntando suas economias, mudou-se para uma cidade fria do leste da Europa. Dessa vez, não levou nenhum dos seus pertences: nem os Nietzsches, nem Lucy, nem a filha de 15 anos, nem os cachorros, nem as lembranças. Não avisou ninguém e no aeroporto até esboçou uma lágrima, mas Josef não chorou.

Quando estava prestes a se inquietar com aquele lugar frio, Josef, sentado em sua poltrona, já um pouco alcóolatra, percebeu que o problema não estava no frio, nem no calor, nem no trânsito, nem na monotonia, nem na falta do que fazer. O problema não estava lá fora.
Foi aí que Josef mudou de Josef.
Uma tímida lágrima brotou em seus olhos, que logo levaram ao pranto.
Josef chorou.

segunda-feira, 1 de março de 2010




Sempre me interessei pela história dos olhos fixos.


Todos já passamos por momentos de distração. Não me refiro aqueles momentos de esquecimento da chave de casa, ou da porta da geladeira aberta ou ainda da chaleira chiando no fogão. Não, me refiro aqueles momentos únicos dos olhos fixos. Quando estamos olhando para uma pessoa, mas não estamos pensando nela; quando estamos apoiados na janela do ônibus, observando uma terça-feira cinzenta, mas nem sequer notamos que choveu; ou então quando estamos numa conversa, mas de repente tudo se silencia e nós adentramos pelos labirintos de nossas mentes por apenas alguns segundos. Resultado: olhos fixos.


Sempre me interessei pela história dos olhos fixos.


Se olharmos fixamente para o nada e deixarmos nossos pensamentos nos guiarem, nem notamos que ficamos alheios ao mundo por alguns segundos (ou alguns minutos, para os mais habilidosos). Porém, a partir do momento em que tomamos consciência dos nossos olhos fixos pro nada e refletimos acerca dos nossos olhos fixos já não teríamos mais os olhos fixos, pois os mesmos lacrimejariam e ficariam levemente doloridos (deve ser esse o nosso ônus pelo "milagre" da consciência!).


Ou seja:


Se não pensar não dói.