sábado, 13 de novembro de 2010

Home, Home again.

Ela acorda no meio da noite.

È cedo pra acordar.

Provavelmente não dormirá mais.

Toda vez que acorda assim é porque tem algo a dizer, algo pra anotar num papel- uma frase, uma palavra, um devaneio qualquer- algo que está na garganta sufocando, apertando, doendo. Precisa escrever, vomitar ou gritar aquilo que lá está implorando para sair.

Era: casa.

Casa. Casa. Casa. Casa.

Repetia pra si mesma como um delírio, como uma demência.

Casa. Casa. Casa. Casa.

Sempre lembra de sua casa, de todos os mínimos detalhes, de todos os pequenos cantos cobertos de pó, dos porta-retratos, das anotações espalhadas pelos cantos, o brinquedo jogado no fundo do roupeiro, o cheiro do sofá, o pote de açúcar manchado com café.

Lembrava-se da sensação de estar em todos os cômodos. Como o último quarto era diferente de todos os outros; a luz que entrava era diferente, o barulho que entrava era diferente, o vento que entrava era diferente e tinha aquele cheiro de que aí dormia a melhor pessoa do mundo. A melhor pessoa do mundo tem um cheiro doce e suave ao mesmo tempo, que afaga e acomoda. Que dá vontade de chorar de tão perfeito.

Lembra-se do quanto era bom, quando criança, deitar naquela cama e sentir aquele cheiro impregnado nos travesseiros.

Era tão bom que doía um pouco. Talvez pra ser bom de verdade precise doer.

Ela conhece a pessoa pela casa em que essa pessoa mora.

Precisa sentir o cheiro, pisar com os pés descalços no assoalho, observar a maneira que se coloca as fotografias, os quadros, as imagens, a posição dos talheres.

Uma pessoa é a casa em que vive. Que vive de verdade.

Normalmente as pessoas só estão em algum lugar. Elas eventualmente chamam isso de casa. Mas não é.

Casa é aquele lugar que nós não estamos, mas gostaríamos de estar. É onírico, talvez irreal.

È bem certo que ela não pensou nisso enquanto tentava recuperar o sono.

De qualquer forma, quando acordava durante a noite insone, se revirando de um lado pro outro, com a garganta presa, não era febre, nem insônia.

É vontade de casa.

É vontade de estar aonde se quer estar.

È uma vontade boa.

Tão boa que dói.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O que eu quero ainda não tem nome.

A Juli, me mandou um poema uns tempos atrás, que eu não lembro de onde ela tirou. Mas aí está:

Perigosa é a Liberdade- assim, tão desejada.
Perigosa é a Liberdade de verdade. Ansiada sem ser compreendida.
A única Liberdade verdadeira é a ausência total de vínculos;
Liberdade de verdade é o não-vínculo.
Só está livre quem não possui vínculos-com nada, com ninguém.
Trabalho, família, amor. Nada.

Nem consigo mesmo, nem com a vida.
Assim, o não vínculo é o não viver.
Liberdade de verdade é não viver.
É deixar de ser; é não ser.
Quem é livre, portanto, nada é. Nada pode ser.
Ser verdadeiramente livre é, simplesmente, não ser.
Perigosa é a Liberdade.
Não quero a Liberdade de verdade.
Tudo o que eu mais quero são vínculos:
De amor, de ódio, de prazer, de dor.
De viver. De morrer.
Perigosa é a Liberdade.
Cuidado com o que pedes:
Corres o sério risco de ser atendido.
Não, não quero a Liberdade de verdade.
Quero vínculos que me liguem a tudo.
Quero amar e viver e sofrer e morrer.
Quero não ter a liberdade para por ela poder ansiar-
e, assim apreciar a jornada.
Até terminar.
Livre.

"Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome."

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

"Bom seria se todos humanos pudessem ver a humanidade perfeita de um cão"


Uma pequena pausa a respeito dos meus dramas existenciais.

Nesses últimos dias não venho pensando sobre coisas que dizem respeito ao meu próprio umbigo, ainda que as vezes valha a pena compartilhar.

Venho pensando em “coisas” e sentimentos que não pertencem aos humanos, e que muitas vezes os próprios humanos- com todos seus conhecimentos técnico/científico/filosófico- não entendem.

Falo de ca.chor.ros!

Era só mais um domingo qualquer quando resolvi sentar na praça para vê-los brincando.

Deixou de ser um domingo qualquer.

Era só mais uma sexta-feira cansativa quando cheguei em casa e a vi de pé na janela, com suas patinhas pra fora, me esperando como sempre me espera todas as sextas ferias.

Toda sexta-feira é a melhor sexta-feira...

Me pego olhando pra eles[os cachorros] e me pergunto: de onde vem tanto amor? De onde vem tanta dedicação? Tanto companheirismo? Tanta sensibilidade?

Porque o ser humano, tão orgulhoso de todas suas capacidades intelectuais, sua “superioridade” de raciocínio e seus feitos grandiosos, não absorve um pouco das qualidades de tão simples criaturas?

Morre o ser humano quando perde suas características animais.

Ah sim. Lembramos que nós, seres humanos, também somos animais. Mas, como diria Nietzsche “o animal delirante, o animal ridente, o animal plangente, o animal infeliz."

Somos animais. Animais inferiores.

Deveríamos ser adestrados por eles, os cães.

Não nos ensinariam a dar a patinha, a sentar, a pegar a bola. Nos ensinariam a amar, a respeitar, a ser fiel. Todos os valores que se fragmentam nessa nossa tão exemplar evolução. Nos mostrariam como se é feliz com coisas simples. Como sujar o nariz na terra é divertido, tão divertido quanto cavar um buraco ou se molhar numa poça de água.

Talvez nós os ensinamos a dar a patinha, a deitar, a rolar porque do resto eles sabem de tudo.

Temos muito que aprender, nós ex-animais-humanos.


sábado, 17 de julho de 2010

Embora lateje louca nos dias de chuva.

Então no meio de sua rotina pacata e sem sentido ela despencou. Sentiu uma dor no peito que não sabia explicar, e o agarrou em vão para que parasse de doer.

Não pararia. Sempre doeu. Era um dor que ela escondia por trás de suas palavras vagas, seus gestos tímidos, latejava dentro de uma caixa dura e fria que ela mesma fez dentro de si.

Alimentou essa dor com os mais requintados dos sentimentos. Fez-la beber dos mais nobres licores dos tempos. E ela assim cresceu.

Um dia esta dor estava maior que ela própria. Doeu tanto que a fez despencar no meio de um café e outro da sua rotina pacata.

Depois de alguns segundos iniciais de apreensão, ela foi procurar um médico, que nada mais era do que seu espelho de casa.

Diagnosticou-se como sendo portadora de saudade.

O tratamento? meia hora de choro compulsivo por dia estirada na cama, com os braços desfalecidos pra um lado, a cabeça afundada no travesseiro.

Uma música triste pra estimular o exercício.

Um quarto em penumbra.

Nos finais de semana, uma garrafa de bebida forte.

O analista, que desta fez seria o teto do quarto ou alguma forma imaginária sentada do lado esquerdo de sua cama perguntaria:

De onde vem esta saudade?

E ela com os olhos confusos de sempre diria que era de tudo: de seres, de cheiros, de sabores, do toque despercebido em alguma forma macia, de um olhar qualquer no ônibus que passou em algum tempo, de um latido, de um colo, dos prazeres tolos e bons.

Voltou-se ao espelho- cabe aqui dizer que nem sempre é um bom médico, porque só diagnostica o que está por fora- limpou os olhos borrados de rímel, mecanicamente ajeitou o cabelo.

Antes de sair, pegou uma fotografia qualquer de um tempo passado qualquer. De longe ela não significava o que sentia. Mesmo assim- num gesto cinematográfico- passou a mão por aquelas formas estáticas gravadas em um papel.

Saiu para continuar o dia, sem antes notar que o chão estava sujo.

Tinha vomitado.

Vomitado nostalgia.


"Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia".

(Saramago)

sábado, 3 de julho de 2010

Bonsai.


De repente, num sobressalto na madrugada, resolvi que iria embora.

Acordei meu namorado e comecei a fazer a minha mala, enquanto ele, ainda torpe de sono, me olhava sem entender.

Algumas mudas de roupas. Alguns livros que esperam as sempre adiadas férias para serem degustados. As fotos da família penduradas no roupeiro.

Combinei que encontraria meu namorado em 2 horas na estação rodoviária pra que ele também pudesse selecionar seus pertences para essa minha decisão repentina, porém sempre sonhada e idealizada em meus mais belos sonhos.

Estava na hora de mudar.

Pegamos um ônibus pra qualquer lugar, desde que fosse longe e isolado de tudo.

A cidade era pequena. Uma praça, um pequeno mercado, algum comércio variado e uma pensão que ficaríamos por alguns dias até encontrarmos uma casa pra alugar.

Não me lembro direito de como foi o primeiro dia que nos mudamos. Lembro só da sensação dos meus pés na grama molhada da manhã. Era uma mistura de felicidade exarcebada com uma intensa vontade de gritar.

Era a sensação de estar viva, sabe? Sensação de que estamos de fato pertencendo a um mundo que não é cinza nem sujo nem fétido. Sensação de amparar os pés aonde eles sempre deveriam estar, porque estes pés não foram feitos pro asfalto, assim como essas narinas, que foram feitas pro ar puro, esses olhos pro colorido das formas e esses cabelos pro vento que bate. Os sentidos aguçados para as coisas que pulsam não para as coisas estáticas, estéticas, estúpidas.

....


Tocou o despertador de todas as manhãs. Creio que não dormi. Divaguei muito tempo olhando pro meu bonsai em cima do roupeiro. Ele lembra muito a mim:: um pedaço de natureza prezo a um mundo que não lhe pertence.



"Fui para os bosques viver de livre vontade,

Para sugar todo o tutano da vida…

Para aniquilar tudo o que não era vida,

E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!"

(Thoreau)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

José Saramago. Luto.




"O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo."

(O Evangelho Segundo Jesus Cristo)


"Se um dia tiveres um filho, ele morrerá porque tu nasceste, desse crime ninguém te absolverá, as mãos que fazem e tecem são as mesmas que desfazem e destecem, o certo gera o errado, o errado produz o certo, Fraca consolação para um aflito, Não há consolação amigo triste, o homem é um animal inconsolável.
Talvez José Anaiço, que foi o da sentença esteja na razão, talvez o homem seja esse animal que não pode, ou não sabe, ou não quer ser consolado, mas certos actos seus, sem outro sentido que parecerem que o não têm, sustentam a esperança de que o homem virá um dia a chorar no ombro do homem, provavelmente tarde demais, quando já não houver tempo para outra coisa."

(A Jangada de pedra)



"O silêncio ainda é o melhor dos aplausos".
(Ensaio sobre a cegueira)


José de Sousa Saramago- 1922- 2010.

sábado, 12 de junho de 2010

“O amor é quando a gente mora um no outro”




Cometi o erro de pensar que nas companhias de outros eu preencheria as lacunas da minha própria existência. Sentia tanta falta de mim que em vão procurava em outros os cacos que compunham o cristal que sou.
Em algum momento dessa trajetória, meio errante, meio torta, perdi um pouco de mim mesmo. E erroneamente julguei que uma terceira pessoa teria a capacidade de suprir os déficits de mim.
Precisava de alguém que me desse a mão, que me olhasse nos olhos, que me criticasse quando necessário, que respeitasse o meu silêncio, que me fizesse rir, mas que me fizesse chorar também e que risse e chorasse comigo, que pudéssemos ter longas conversas sobre tudo, sem que parecêssemos tolos ou sábios, que ficássemos quietinhos no meio da noite se olhando em silêncio e entendendo tudo.
Eu tenho total consciência das minhas lacunas. Meu namorado não supre elas. Ele faz muito mais: a cada dia que passa ele faz com que eu conheça e aprenda mais de mim, fazendo com que as lacunas se tornem imperceptíveis. Não preciso que me distraia delas, preciso que ande de mãos dadas em mim e comigo pra acertamos juntos as falhas do cristal. É aprendendo um com o outro que nosso relacionamento flui naturalmente, de maneira mais que perfeita, praticamente surreal. È a ajuda mútua pra achar a cura e não só aliviar a dor.
Por isso, nesse dia dos namorados, eu agradeço ao Tiago Justo da Silva por ser mais que meu namorado, meu confidente e meu amigo. Agradeço por ser meu companheiro de vida.
E que o Bonsai que tu me deu marque o início de nossa família.
Te amo.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Vomitar este tédio sobre a cidade.

Outro dia percebi que um pássaro próximo a minha janela quebrou o tédio sobre a cidade.
Naquela manhã acordei mais cedo do que o de costume, me vesti bem, tomei um bom café da manhã, peguei o mesmo ônibus de todos os dias e não reclamei da superlotação, vi os mendigos que dormem nas beiras de estrada, senti o cheiro fétido de esgotos a céu aberto, o congestionamento, as buzinas, as sirenes, a fumaça, mas manti a mesma expressão serena, os olhos vívidos de quem acordou se sentido bem.
Na madrugada fui acordada pelo mesmo pássaro de antes. Percebi que ele cantava cedo demais em comparação com os outros pássaros e que não era um som cadenciado, mas sim uns espécimes de gritos frenéticos. Ora, ele não passa de um pássaro da cidade, não tem mais hábitos de pássaro “normal”, agora tornou-se “civilizado” como outros animais que muito infelizmente sobrevivem em grandes cidades.
Naquele dia nem levantei da cama. Tampouco abri a janela. Passei cada minuto naquele ambiente de masmorra, ingeri sacos de comida industrializada, me entorpeci de programas inúteis na televisão, tive ânsia de vômito, palpitações no peito, chorei descontroladamente, depois ri como uma tola. Percebi que estava no ápice do alienado processo “civilizatório” das grandes cidades. Percebi que pela primeira vez em anos, estava me comportando como as outras pessoas se comportam.
Num ímpeto meio inconsciente, levantei da cama, abri a janela e pensei em gritar. Seria um grito guardado há anos na boca do estômago. Não seria um grito de dor, nem de ódio, mas um grito que afirmasse o meu pertencimento aquele local.
Com a janela aberta e vislumbrando a selva de pedras ao meu redor, acompanhada de barulhos diversos, não gritei.
Com um esboço de sorriso no rosto reafirmei, mais uma vez, que minha casa não é ali.

terça-feira, 18 de maio de 2010


A civilização é uma gaiola.

É porque nós já somos tão presos que temos que prender os outros?

Abra sua gaiola cerebral. Num espaço de dois por dois você jamais vai esbarrar consigo próprio.

Se você nasceu com asas atrofiadas, não mutile a dos outros.

Abra. Voe. Mude.








O animal selvagem e cruel não é o que está atrás das grades. É o que está na frente delas. (Axel Munthe)























terça-feira, 13 de abril de 2010

Pseudos-tudo.

Há tempos que não escrevo sobre pessoas. Não porque as menospreze, ou as odeie, mas simplesmente porque eles não me impressionam mais, nem pela suas crueldades, muito menos pelas suas improváveis bondades. Hoje me peguei pensando nos pseudo-tudo.

As vezes eles podem ser uns pseudo-cults: Pelo fato de terem assistido 8 e 1/2 Fellini e ouvirem Tchaikovsky, interagem com seu interlocutor como se fossem os detentores de toda a verdade das artes, e mais, agem como se, tendo um conhecimento avançado e específico das artes- o que é louvável- tivessem assim o conhecimento de todas as outras áreas tangentes ao conhecimento humano. Cometi um erro pertinente ao escrever este texto, proposital até: eles não interagem com o interlocutor porque são sempre intelectualmente superiores, mesmo não sendo. "Conversam" com um olhar distante e vazio, mesmo que estejam te encarando nos olhos, normalmente com o nariz empinado, gestos efusivos e tom de voz muito mais alto do que as outras pessoas que estão ao teu redor e num raio de 4 km de distância. O interlocutor passa, nessa situação, por um reles verme cuja opinião não deve ser considerada. E eu concordo com a posição do reles verme porque discutir com um pseudo-cult só faz com que o ego inflado do mesmo fique ainda maior. Quem ler este texto deve estar perguntando: mas porque PSEUDO- cult? E é fácil de explicar: O que predomina nessas pessoas, além da arrogância desenfreada e um certo pedantismo de atenção, é a intolerância, e intolerância, na visão dessa pessoa que aqui escreve é sinônimo de burrice. Logo, o que era pra ser culto, se tornou burro.
Penso que "cultura" , nesse caso, pode ser usado para fins muito mais úteis do que se auto-promover.

Concomitante a esse pensamento, surgiu um texto desses de internet que faz bastante sentido agora:

"Certa manhã o meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no bosque.
Deteve-se subitamente numa clareira e perguntou-me:
- Além dos pássaros, ouves mais alguma coisa?
Apurei os ouvidos e respondi:
Estou a ouvir o barulho de uma carroça.
- Isso mesmo, disse o meu pai, de uma carroça vazia.
Perguntei-lhe:
- Como sabe que está vazia, se ainda a não vimos?
- Ora, é fácil! Quanto mais vazia está a carroça, maior é o barulho que faz.
Cresci e hoje, já adulto, quando vejo uma pessoa a falar demais, aos gritos, tratando o próximo com absoluta falta de respeito, prepotente, interrompendo toda a gente, a querer demonstrar que só ele é dono da verdade, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai a dizer:
- Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz! "


(Obs: em breve escreverei mais sobre os ourtros pseudo-tudo, se eu me pegar pensando sobre)

sábado, 27 de março de 2010

Josef não nasceu como as outras crianças. Ele não chorou ao sair das entranhas da sua mãe, nem chorou depois, e raramente chorava quando sentia fome ou frio ou medo.
Não cresceu como as outras crianças do seu bairro: raramente participava das brincadeiras próprias da infância, assim como não participou das "brincadeiras" da adolescência.
Com 12 anos tomou sua primeira grande decisão: deixou de lado suas raras companhias-com a excessão de uma- e comprou um livro do Nietzsche e esforçou-se por anos a entender algumas poucas ideias, e por fim, o livro em si. Naquele mesmo ano escreveu em seu diário- sua única companhia- a seguinte frase que ele ouvira de algum outro grande escritor: "Fiquei tão só, aos poucos. Fui afastando essas gentes assim menores, e não ficaram muitas outras"
Antes de sair da escola já tinha decidido que não ficaria mais em sua cidade. Ela foi sempre o alvo de suas inquietações e revoltas. Achava-a antiquada, retrógrada, não possuia teatro, nem cinema, nem música de qualidade e seu único refúgio era uma pequena biblioteca cujos livros ele já os tinha lido todos.
Um dia, foi-se embora.
Alugou um pequeno quarto de pensão e começou a trabalhar como auxiliar de escritório. Na primeira semana foi a uma ópera, dois museus e comprou livros usados, que para ele foi o ápice daqueles tempos. Fez alguns amigos.
Ingressou na faculdade meses depois, não sabia se fazia Filosofia ou Direito, acabou escolhendo Direito porque tinha mais pretígio social.
Arranjou uma namorada, Lucy. Não se apaixonara de primeiro momento, e também não se apaixonara de segundo, mas era necessário ter uma namorada porque seus pais estavam já desconfiados de sua sexualidade.
Em pouco tempo passou a achar os museus daquela cidade chatos, os teatros medíocres e os cinemas demasiadamente caros, além de que o trânsito era infernal e não se ouvia o barulho de pássaros. Resolveu que precisava morar numa cidade com praia.
Levou seus poucos pertences e Lucy, e alugou em pequeno apartamento. Sua primeira atitude foi comprar um bonsai e adotar uma cachorra. Conseguiu um emprego em um escritório de advocacia, e passeava frequentemente com Lucy, grávida, e sua cachorra, grávida.
Quando sua primeira filha nasceu ele não chorou. Nem quando a viu sair das entranhas de sua esposa, nem depois quando ela se formou no jardim de infância.
Decidiu que não deveriam mais morar na praia. Era demasiadamente úmido, a casa estava sempre cheia de areia e no período do verão era tão insuportável o barulhos dos carros e das gentes que ele não podia ler seus livros.
Mudou-se para uma cidadezinha vizinha daquela que nascera, tão menor quanto, e com ele viajaram todas as mesmas inquietações de outrora. Sabia que não suportaria morar lá por muito tempo. Ainda não tinha teatro, nem cinema, nem música de qualidade e era sempre muito parado, muito monótono e demasiadamente agrária, além de ser muito distante da capital e do litoral.
Estabeleceu-se nessa pequena cidade até os 15 anos de sua única filha, que ele nunca abraçou.
Depois, juntando suas economias, mudou-se para uma cidade fria do leste da Europa. Dessa vez, não levou nenhum dos seus pertences: nem os Nietzsches, nem Lucy, nem a filha de 15 anos, nem os cachorros, nem as lembranças. Não avisou ninguém e no aeroporto até esboçou uma lágrima, mas Josef não chorou.

Quando estava prestes a se inquietar com aquele lugar frio, Josef, sentado em sua poltrona, já um pouco alcóolatra, percebeu que o problema não estava no frio, nem no calor, nem no trânsito, nem na monotonia, nem na falta do que fazer. O problema não estava lá fora.
Foi aí que Josef mudou de Josef.
Uma tímida lágrima brotou em seus olhos, que logo levaram ao pranto.
Josef chorou.

segunda-feira, 1 de março de 2010




Sempre me interessei pela história dos olhos fixos.


Todos já passamos por momentos de distração. Não me refiro aqueles momentos de esquecimento da chave de casa, ou da porta da geladeira aberta ou ainda da chaleira chiando no fogão. Não, me refiro aqueles momentos únicos dos olhos fixos. Quando estamos olhando para uma pessoa, mas não estamos pensando nela; quando estamos apoiados na janela do ônibus, observando uma terça-feira cinzenta, mas nem sequer notamos que choveu; ou então quando estamos numa conversa, mas de repente tudo se silencia e nós adentramos pelos labirintos de nossas mentes por apenas alguns segundos. Resultado: olhos fixos.


Sempre me interessei pela história dos olhos fixos.


Se olharmos fixamente para o nada e deixarmos nossos pensamentos nos guiarem, nem notamos que ficamos alheios ao mundo por alguns segundos (ou alguns minutos, para os mais habilidosos). Porém, a partir do momento em que tomamos consciência dos nossos olhos fixos pro nada e refletimos acerca dos nossos olhos fixos já não teríamos mais os olhos fixos, pois os mesmos lacrimejariam e ficariam levemente doloridos (deve ser esse o nosso ônus pelo "milagre" da consciência!).


Ou seja:


Se não pensar não dói.


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010




"Lembre-se de 5 de novembro. A traição e a conspiração da pólvora. Não vejo nenhum motivo para a traição da pólvora ser esquecida.



Mas quanto ao homem?



Sei que o nome dele era Guy Fawkes.



Sei que, em 1605, ele tentou explodir o Parlamento.



Mas quem era ele, realmente?



Como ele era?



Falam para nos lembrarmos da ideia, não do homem, pois um homem pode fracassar.



Ele pode ser preso, morto e esquecido, mas, 400 anos depois uma ideia ainda pode mudar o mundo.



Testemunhei em primeira mão a força das ideias. Vi gente matar em nome delas e morrer defendendo-as.



Mas você não pode beijar uma ideia.



Não pode tocá-la ou abraçá-la.



Ideias não sangram.



Ideias não sentem dor.



Elas não amam.



E não é de uma ideia que eu sinto falta.



É de um homem."







(V for Vendetta)


"Atrás dessa máscara há mais do que carne e sangue: Senhor Creedy, atrás dessa máscara há uma ideia, e as ideias são à prova de balas."

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Este foi o resultado:

Josef e o analista. (por Maiky)

-Não quero viver nesse mund0 caótico; o caótico dos carros, o caótico dos prédios, o caótico dos seres. Prefiro a bolha, sim a bolha, a bolha fiel das utopias, a bolha confortável da desilusão, do desapego. A bolha desprovida de esperança e gabolices desse "admirável mundo novo". A bolha ébria de passado.
-Mas se é feliz em uma bolha Josef?
- Antes verdadeiramente melancólico e inquieto numa bolha, do que meramente alegre e acomodado no caos.
- Mas cabe apenas uma pessoa na bolha, Josef, não te sentes só?
-Nunca. Estamos todos muito próximos aqui: eu e os monstros criados dentro de mim, mas há fadas também, e eu preciso entender o que dizem.
-Mas deixarás de conhecer as milhares de pessoas que te cercam!
-Em breve morrerei, e seria terrível se eu tivesse em meu velório milhares de pessoas e um defunto que não conheçe a si próprio. Prefiro apenas conviver com pessoas que compreendem que uma bolha é minha morada, ou que não questionam o porquê de eu não fazer parte do apressado mundo caótico; o caótico dos carros, o caótico dos prédios, o caótico dos seres.

Esta foi a inspiração:

A flor e a Náusea -fragmento- (por Drummond)

(...)
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rios de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

(...)
Sento-me no chão da capital do país as cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no ar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfálto, o tédio, o nojo e o ódio.